Mito e preconceito: cárcere da adoção

Amor de Aderval deu sentido à vida da pequena Camila

“Com tanta criança saudável, o senhor vai levar logo essa doentinha?”. Cara a cara com o absurdo, o bioquímico Aderval Nunes pasma por um instante. Engole seco, recompõe-se, segue em frente. Decidido, não seria o preconceito, impregnado nas próprias instituições de proteção a crianças e adolescentes e que, naquele momento, alastrava-se na voz e no inconsciente da funcionária de um abrigo, que o demoveria do sonho de ter a pequena Camila, 6 anos, como sua filha. Com uma deficiência mental moderada, ela encontrou em Aderval e na sua esposa, a contabilista Maria Luíza Santana, uma família e um estímulo para voltar a andar e falar. 

Hoje, um ano e oito meses após a adoção, médicos estimam 90% de chances de recuperação. “Procurei pensar no bem-estar da criança e no amor que eu sentiria por ela, e que também é recíproco, sem me preocupar que fosse igual a nós. Camila é negra, mas isso não nos incomoda. Ela uniu a família, é supercarinhosa e, segundo o fisioterapeuta, é a única criança especial que tem vontade própria de melhorar, que chora quando acabam os exercícios. Ela se adapta a qualquer ambiente, e o que fez com que ganhasse essa liberdade foi o tratamento igual que recebe dentro de casa”, testemunha Aderval.

Enquanto a Associação dos Magistrados do Brasil – AMB – contabiliza cerca de 80 mil crianças e adolescentes em situação de risco nos 6 mil abrigos de todo o país – e em Sergipe o número de abrigados é de 428, de acordo com Núcleo de Apoio à Infância e Adolescência do Ministério Público Estadual –, casos de amor como o de Aderval e Maria Luíza pela pequena Camila continuam raros e resvalam na muralha dos mitos e medos que envolvem a adoção. 

Os números do Cadastro Nacional de Adoção, criado em abril pelo Conselho Nacional de Justiça, ilustram muito bem a situação. Até agora, estão cadastrados 10,6 mil pais para 1.500 crianças no Brasil. Pelos dados do Grupo de Apoio à Adoção de Sergipe – Gaase –, o menor Estado da Federação possui apenas 17 crianças disponíveis e há aprovados pelo juizado 115 casais ou pessoas à espera de um filho adotivo. Em suma, o número de brasileiros interessados em adotar é praticamente nove vezes maior que o de crianças à espera da adoção, mas esses pequenos ainda permanecem abrigados, sobretudo, por conta do estigma do “defeito de fabricação”. 

SOB MEDIDA DO PRECONCEITO 
A maioria dos propensos pais adotivos exige crianças brancas, de cabelos lisos e olhos claros, com idade abaixo de um ano e sem qualquer problema de saúde. Em um Brasil erigido na opressão de negros, índios e mestiços, não é difícil imaginar que os abrigos, albergues de filhos de pobres e também dependentes de um sistema precário de saúde pública não disponham de tantas crianças com esse perfil “bonito e saudável”, feitas sob encomenda para dar conta do preconceito. 

Em outros tantos casos, casais inférteis temem adotar meninos ou meninas que tragam consigo “descompassos psicológicos” oriundos dos seus pais biológicos. E os que adotam geralmente debitam na conta da adoção muitas das oscilações emocionais, normais e inerentes a qualquer criança. “Isso não existe, e eu sempre faço um teste: diga-me o nome completo do seu tetravô paterno? Não sabe? Ninguém sabe. Eu também não sei o do meu. Agora se a gente não sabe nem o nome da nossa ascendência, como quer exigir de uma criança saber os antecedentes dela, se tem problema, se não tem?”, questiona o filósofo, psicólogo, teólogo e avô adotivo pernambucano Luiz Schettini Filho, um dos maiores estudiosos da adoção no Brasil. 

“Quando se fala em cultura da adoção, está se referindo ao fato de adotar um filho pelo filho. E eu creio que, aos poucos, temos incutido essa cultura, tanto que há pessoas adotando crianças com necessidades especiais. Eu entendo que não é todo mundo que tem essa disponibilidade, mas a gente já vê isso, já vê adoções inter-raciais, de crianças de mais idade, e a cada vez que isso acontece e chega ao conhecimento das pessoas, elas vão se despregando um pouco desse preconceito. E o mérito disso é exatamente a ação de pessoas e instituições como os grupos de apoio à adoção, que hoje já são cerca de 120 no país. Eles têm dado uma contribuição enorme”, diz Schettini. 

ÉTICA E GENÉTICA 
Segundo o pesquisador pernambucano, o rótulo da “criança perfeita” extrapola o universo da adoção e envolve, ainda, questões de comportamento. “O que é a criança perfeita? Para ser bem prático, é aquela que não dá trabalho, que é estudiosa, organizada, não briga com os outros e obedece ao que a gente manda. Mas isso na verdade é a criança submissa, e quem descobre que essa ‘criança perfeita’ não existe passa a olhar para uma coisa que é fundamental na relação parental: a singularidade do outro”.

Luiz Schettini acredita que o grande mito a ser quebrado não está nas filas de adoção, mas na mentalidade de pessoas que não podem ter filhos e, ainda assim, recusam-se a aceitar a ideia de adotar uma criança. É a mítica ligação genética enquanto arrimo familiar. “A família não se constrói através de uma ligação genética, mas através de uma ligação ética. O genético pode existir, mas ele não é imprescindível, nem fundamental. O ético, sim. E o ético está ligado ao afetivo, de modo que todos os filhos têm de ser necessariamente adotivos, mesmo aqueles que a gente gera. Se eu gero um filho e não o adoto afetivamente, na realidade eu não sou o pai. Sou apenas o genitor. Por isso é preciso acabar com essa história antiga de laços de sangue. Isso me soa um tanto vampiresco”.

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