Prazer, eu sou o Calheiros

Renan Calheiros foi absolvido. E daí? A cassação não é um ato punitivo. É um prêmio. O ladrão de galinha mofa no xilindró. O de gravata simplesmente é cassado, tira umas férias remuneradas – com os nossos impostos, diga-se de passagem – e, graças aos votos de cabresto e à anêmica memória da Nação, retorna ao poder com olhar compadecido, discurso democrático afiado, entre abraços calorosos de bajuladores e comparsas. Um regresso triunfal, hollywoodiano.
Roberto Jefferson foi cassado e virou celebridade. Lançou livro. Em seu blog, define-se “ex-deputado, 54 anos, advogado, aprendiz de cantor”. É, de fato, um artista nato. ACM, este bem mais astuto, violou o painel do Senado e logo deu um jeitinho de escapar aos oito anos de cassação (pena cruel por demais para quem viveu sob a égide do autoritarismo e, como um carrapato, cevou a sugar o sangue, derramado, por que não dizer, pela ditadura militar). Sim, ACM renunciou e, dois anos depois era um senador reeleito. Somente no mês passado, por conta de uma intimação do cara lá de baixo, partiu, acredito, de uma vez por todas (em se tratando do Malvadeza, não duvido que ressurja qualquer dia desses em pleno Pelourinho, ao lado de Dona Canô, nos braços do povo baiano e com Caetano, Bethânia e Gal a cantar o Hino do Senhor do Bomfim).
Casos como o do Cabeça Branca, Roberto Jefferson, Luiz Estevão e, agora, do todo-poderoso Renan Calheiros fazem-me esquentar o juízo... Diabos, por que ninguém questiona a própria prática da cassação???? A imprensa, a academia, o empresário, o intelectual, a miss entrevistada a respeito do seu novo penteado, o jogador de futebol a discursar sobre o jogo beneficente para ‘as criancinhas da África’, a atriz que estréia seu mais novo espetáculo, o português da padaria, o dono da banca de jornais, o cara que limpa o vidro do meu carro nos semáforos... Enfim... por que só para mim a cassação é mais imoral do que a absolvição, já que lugar de ladrão é na cadeia e não lançando livros e blogs?
A história de Renan Calheiros virou ‘escândalo’ até o momento da sua absolvição. Depois disso, amuou. Foi atirada à vala do esquecimento nacional. Como sempre, o brasileiro ensaiou insatisfação; enraiveceu à primeira denúncia do Jornal Nacional; remoeu a sem-vergonhice ao segundo dia; ao terceiro, preocupou-se em tecer breves e insipientes comentários. Por fim, no quarto dia, transformou o assunto em piada de mesa de bar e pronto. Voltou ao seu estado normal de catatonia.
Tudo isso porque brasileiro de responsa carrega consigo duas certezas: “Somos penta” e “Político é tudo igual” (como se não fosse ele o eleitor, ou, pior, reeleitor da calhordice engravatada). Perpetuada, esta última crença acaba fazendo-nos votar em qualquer um mesmo. No Rola, na Chana ou em quem mais puder nos esfregar à fuça como fazemos pornochanchada do futuro do país – e, obviamente, do nosso.
Somos nós, portanto, os embusteiros da nossa própria dignidade, capacidade de repulsa e, sobretudo, de mudança. Somos nós que, a cada eleição, digitamos números desatentos (você lembra em quem votou no último pleito?), olhamos rapidamente para a foto do sujeito a sorrir deslavadamente na urna e encarcamos o dedo no ‘Confirma’. Para agradecer o saco de cimento ‘dado’ durante a campanha; assegurar o cargo comissionado; ajudar um amigo candidato sem projetos, mas doidinho para usar a política como fonte de renda (este país é de tal forma imoral que, quando o ‘cidadão’ não tem mais como ganhar dinheiro, resolve ser político).
Somos nós a votar para salvar um outro amigo, este prestes a perder o emprego caso o seu ‘padrinho político’ seja expurgado do poder. Enfim, somos nós os verdadeiros bandidos. Os anti-heróis. Se não o fôssemos, já teríamos saído às ruas, em caminhada, a empunhar faixas e cartazes com mensagens de protesto (e sem precisar pintar a cara espetaculosamente, de forma festiva, para crescer a audiência da Rede Globo).
Invadiríamos o Senado, o Congresso, o Palácio. Recobraríamos a nossa decência. Assim, como num conto de fadas em que o mocinho vence a guarda do castelo e liberta a jovem indefesa. Não. Definitivamente, não somos os mocinhos. Sequer temos coragem de estender braços à nossa moral, pedindo para que jogue as tranças como Rapunzel. Somos bandidos e pronto. Não exigimos respeito aos nossos votos, pois nós sequer os respeitamos.
O discurso de que todo político é ladrão virou arma letal nas mãos corruptas da ‘esquerda’ e ‘direita’ deste país. É a estratégia perfeita para os mandos e desmandos, para os ‘desvios’ de milhões (quem leva pouco é ladrão safado. Quem leva muito é ‘ímprobo’). E nós, os pentacampeões brasileiros, assistimos a tudo passivamente. Financiamos a roubalheira e permitimos que os nossos representantes reúnam-se a portas fechadas para decidir o próprio destino e rir ironicamente da nossa cara. Da cara de milhões que, em casa ou nas ruas, forjam esperança, mas, em verdade, antevêem os crimes de colarinho e, entre escárnios como “Isso não vai dar é em nada!”, assumem a postura não menos depravada de total cumplicidade. Nós, o feliz povo brasileiro, endossamos a corrupção. Nos sabotamos. Por Deus e por tantos outros Renans que virão, somos nós os verdadeiros larápios. Somos nós os nossos verdadeiros Calheiros. Prendam-nos!

Comentários

analise ia disse…
Eu já pedir minha prisão preventiva, mas, como estão mais preocupados com o ladrão de galinha, continua - como os outros - votando em pestes indecentes.
analise ia disse…
Eu já pedir minha prisão preventiva, mas, como estão mais preocupados com o ladrão de galinha, continuo - como os outros - votando em pestes indecentes.
Thiago Barbosa disse…
Estou sem folego até agora!!! Que texto, você tem razão, a cassação seria também um prêmio, mas a absolvição também é uma afronta, não sei o que é pior. A impressão que eu tenho é que ele já sabia que sairia impune, pois o político que quer evitar a cassação renuncia, até ACM fez isso, e ele sequer deixou a presidencia do senado.

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