Agacha, pega e come

Lixão na abandonada Kalil
Foto: Tarcísio Dantas/Jornal da Cidade


Maltrapilho, ele caminha a passos lentos em meio à podridão. De olhar arguto, curvado para baixo, perambula por entre as sobras. Não deixa passar qualquer réstia de subsistência impregnada de chorume. Aos 12 anos, o menino de Riachão do Dantas, a 99 quilômetros de Aracaju, a capital da qualidade de vida, segue os passos da mãe: é um catador.
Para o jornal ele é “Jonathan Silva”. Nome fingido, égide da pouca dignidade que ainda lhe resta. Para o Poder Público, não é ninguém. Mirrado e roto, transita cauteloso como um gato, astuto como um rato, farejador como um cão. Castigado pela fome e pelo sol, não titubeia diante do fétido e nauseabundo pedaço de carne – desperdiçado há um dia ou mais, por alguém de bucho farto ou paladar exigente, que desaprovou a comida. O menino não tem por que esnobar: agacha, pega e come.
“Jonathan” poderia estudar, vislumbrar um futuro. Mas seus sonhos estão castrados. Não quer ser piloto, nem médico, nem professor, nem músico, nem astronauta. Não quer ser nada. Matriculado na 4ª série de uma escola pública, engorda as estatísticas de um governo que contabiliza alunos como quem demarca gado. Arguido sobre a profissão que almeja, responde sem exprimir qualquer emoção: “Ah, sei lá. Qualquer coisa aí”.
Não percebe, mas já é tratado como qualquer coisa. Pela prefeitura, pelo Estado. O terreno onde cata o pão de cada dia; a tira de pano suja que vai aquecer o irmão mais novo; a cadeira quebrada que, com umas marteladas do pai, pode forjar conforto no casebre da zona rural, tudo compõe o cenário vergonhoso do definhamento da educação. Isto porque ali mesmo, onde “Jonathan” sobrevive como bicho, já funcionou uma escola, a Agropecuária de 1º Grau Dr. Nagib Leitune Kalil, construída em 1997 com verbas federais e que, sem motivo reconhecidamente plausível, fechou as portas quatro anos depois.
Dinheiro público foi entornado e o futuro de jovens como “Jonathan” também. A unidade educacional sucumbiu, tomada pelo matagal. Veículos transportadores de alunos perecem ao sol e ao sereno; carteiras formam entulhos; livros destroçados disputam espaço com esterco de animais. As salas de aula da Nagib Kalil transformaram-se em baias – reflexo do tratamento dado aos estudantes de Riachão.
O descalabro afronta, há mais de uma década, os direitos humanos e, em especial, os fundamentais da criança e do adolescente. Entre um prefeito e outro, a política da ‘vista grossa’ persiste, o espectro do descaso percorre corredores de secretarias municipais, estaduais e do Ministério Público. Encrua no gélido mármore que adorna as pomposas edificações da Justiça. Mesmo sabendo que “Jonathan”, todo santo dia, refaz o trajeto da insalubridade e, na luta pela vida, arrisca a própria vida em meio ao lixo hospitalar despejado na antiga Kalil, ninguém toma providência, ninguém move uma palha. Impassível, o menino retribui o desprezo. De olhar curvado para o chão, ele simplesmente agacha, pega e come.

Comentários

Anderson Ribeiro disse…
Apesar de ser 'choroso'... belo texto, Alvinho. Um Zé Ninguém, invisível é bem isto o que eles são e cabeça baixa sua retribuição à sociedade. O que lhes reserva o futuro? nada! Portanto, existir já basta. Passar pela vida mesmo sem ser percebido.
Anônimo disse…
OLá Alvinho.
Li seu texto até o fim, ainda que a todo tempo achasse que não conseguiria terminar.
Muito triste, doido, difícil de encarar. Certa vez li um autor que dizia "A morte de qualquer homem me diminui, porque faço parte do grande gênero humano". Ler a realidade da lixeira me fez lembrar dessas palavras e me sentir um pouco em dívida com esse gênero do qual também faço parte.
A culpa é de todo mundo, alguns em maior, outros em menor grau, mas de todo mundo.
Abraços,
Simone Tuzzo
Anônimo disse…
Meu ídolo!!!!!! Vc é o cara, show de bola o texto, gostaria de ver mais textos assim no impresso, que não sejam um mero lide! A situação requer um texto trabalhado, polido e não burocrático! Abralos Muller!!!

Thiago Barbosa
Josival disse…
Alvinho, vc me mostrou este texto no redação da Tv Atalaia, li e à noite, sozinho, com os meus sentimentos lembrei do seu texto. Você reforça que falta humanidade nas pessoas. Para mais ou para menos. Mas falta!
Outra coisa iteressante em seu texto, foi a lembrança do poema 'O BICHO', do Manuel Bandeira, que vai logo a seguir. Como estes textos dialogam, nos desnudam e em boa parte de nossas vidas, nada fazemos para alterar este cenário de caos.

O BICHO
VI ONTEM um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.

Brilhante texto, prazer em partilhar os seus achados e sua leitura do mundo. Quero mais do mesmo.
Anônimo disse…
Caríssimo Álvaro:

Incomodativo o artigo, cujas palavras, precisas e implacáveis, porquanto não escamoteiam a realidade, conseguem "fotografar" e denunciar um cotidiano que sabemos bem existir, todavia fazemos de conta não perceber, simplesmente porque dói, choca e nos torna impotentes.

Abraço agradecido,

Selmo Alves.
Anônimo disse…
Texto tão lindo de uma realidade tão triste, que infelizmente passa tão invisível aos olhos da sociedade...

Arguido sobre a profissão que almeja, responde sem exprimir qualquer emoção: “Ah, sei lá. Qualquer coisa aí”.


Isso dói, viu..




Abraços,

Marina Lopes

Postagens mais visitadas deste blog

O mãozinha de pilão

A síndrome do chifrudo imaginário

Quero ser médico do Detran!