A Sociedade do Espetáculo

Fotomontagem: glauberjatobá


Simone Tuzzo*

A sociedade sempre se preocupou com aquilo que acontece na casa do vizinho. Em determinados tempos, ao longo da história e variando entre classe social, credo e cultura, as pessoas conseguem se manter ora mais ou ora menos discretas na forma como expressam sua curiosidade acerca daquilo que diz respeito à vida alheia.
Mas foi a partir do surgimento da mídia que a sociedade passou a se interessar de forma grotesca com a privacidade do outro. As pessoas mudaram? Provavelmente não. O que mudou foi o acesso, a ênfase, a facilidade e os interesses econômicos e de audiência dos veículos de comunicação ao explorar assuntos que não representam o interesse social, mas sim a fofoca, a vida real transformada em novela, o espetáculo.
O caso Isabella Nardoni choca, mas não é somente por se tratar de um crime bárbaro. Se de fato o ato de uma menina ser assassinada pelos pais fosse o bastante para impressionar toda uma nação, poderíamos questionar por que até hoje nunca se deu tanta importância aos diversos acontecimentos diários de situações bem similares, envolvendo pais, irmãos, tios, pessoas de laços sangüíneos em crimes, atos de violência, seqüestros, torturas, estupros.
O caso Isabella choca muito mais pelo que a Indústria Midiática conseguiu transformar a história, narrada diariamente em capítulos, com atores, luzes, câmeras, cenário, enfim, ingredientes típicos de produções de teledramaturgia. No melhor estilo “Quem matou Odete Roitman?”, a dúvida que tirou o sono de milhões de brasileiros no final da década de 80, quando a novela da Globo Vale Tudo movimentou o Brasil. A mesma legião de Brasileiros também se diz perturbada e aguardando o último capítulo de uma novela que irá revelar: “Quem matou Isabella Nardoni?”
Numa demonstração clássica do que a mídia consegue incutir na cabeça das pessoas, os brasileiros estão preocupados com o caso Isabella como se ela fizesse parte de cada família, assim como a mídia faz com as celebridades. Rotineiramente, é comum sabermos mais da vida dos artistas do que da vida das pessoas que estão fisicamente bem mais próximas de nós. Da mesma forma, saber de Isabella tornou-se mais importante do que saber do desempenho do filho na escola, do dia atarefado do marido ou da esposa no trabalho, pois quando se chega em casa a prioridade é ligar a televisão para saber a novidade do caso.
A construção biográfica ganha uma dimensão fundamental no mundo contemporâneo e é comum vermos a narrativa de biografias de celebridades como Lady Diana ou Ayrton Senna, que emprestaram para os veículos de comunicação de massa sua história, sua privacidade e o último capítulo trágico da morte.
Numa previsível evolução do caso, as narrativas biográficas veiculadas na mídia ganham um ar de autoria coletiva. Jornalistas, fotógrafos, redatores, revisores, chargistas e cinegrafistas são responsáveis por narrar a vida dos protagonistas dos meios de comunicação de massa, mais que isso, não conformados somente com o poder de contar todo o seu passado, os narradores assumem também o papel de videntes e passam a narrar as futuras ações do protagonista, caso a morte não o tivesse tirado de cena. Isabella Nardoni teria sido médica, advogada, jornalista ou modelo? Vamos especular...
Aliás, a especulação tornou-se um ingrediente necessário para que um caso que não tem ações diárias pudesse se manter 24 horas no ar. Numa similaridade ao Truman Show – a narrativa de cinema em que um homem tem sua vida inteira transmitida ao vivo, 24 horas por dia via satélite –, também passamos a vivenciar o Isabella Show brasileiro, num espetáculo ininterrupto, basta ligar a TV.
Ironicamente, uma televisão que de tanto explorar o caso se tornou seu refém e, ainda que quisesse, não pode parar o show, pois os telespectadores cobram dela a apresentação do último capítulo. E será o fim? Claro que não. Outro caso-verdade será adotado e, na mais fiel réplica do formato de teledramaturgia, o primeiro capítulo será apresentado para a sociedade que se apaixonará pelo novo enredo e, em breve, não se lembrará mais da paixão ardente por Isabella Nardoni.

* Simone Tuzzo é Doutora em Comunicação, docente e assessora de Comunicação da Universidade Tiradentes – Unit.

Comentários

Anônimo disse…
Esta matéria retrata o espetáculo do sensacionalismo barato.Quantas Isabellas morreram hoje?
Roberto Müller
Anônimo disse…
Esse é o ponto: "uma televisão que de tanto explorar o caso se tornou seu refém e, ainda que quisesse, não pode parar o show, pois os telespectadores cobram dela a apresentação do último capítulo". Será? Refém do que exatamente? Da audiência? Das respostas? Achei brilhante a linha de pensamento desse texto... lembra-me muito o Arbex Jr. em Showrnalismo. Mas será mesmo que elas se tornam reféns? Será que o que os canais brasileiros privados (é bom que sempre se separe o público do privado, nesses casos), não querem é exatamente não parar? Será?
Anderson Ribeiro disse…
Fico pensando nisso tb. A novela Isabella (apesar de enfadonha) ainda dá pontos de audiência e as Tvs privadas expremem até virar pó o assunto. Não extamente por que querem dar 'o resultado', o fim setenciado de que a sociedade cobra de um fato noticiado, 'dado' na tv e que não sabe como acabou. Ela são reféns de quem? e o telespectador de quem é refém?
Thiago Barbosa disse…
Uma análise recente do programa Observatório da Imprensa revelou que a TV Brasil dedicou apenas 13 minutos de sua programação, nos primeiros 30 dias do caso, ao assunto, e a TV Cultura dedicou 36 minutos, enquanto as Tv s comerciais dedicaram horas e horas diarias da programação. Inclusive, na reconstituição, a Record News fcou no ar com o assunto por aproximadamente 18 horas quase que ininterruptas. A Globo e a Record alugaram um terraço de um Salão de Beleza em frente ao Edifício London para fazer uma redação improvisada. Há necessidade mesmo de tudo isso?

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