Filhos da pauta!
"Três, dois, um. Início do off". Respiração ponderada e microfone em riste, o repórter televisivo anuncia, de forma pomposa, a sua morte. Em meio a tanto esplendor, a tanto espetáculo, não percebe que é um suicida. E que na televisão é assim. Retocam-se as maquiagens, borram-se os textos, enodoam-se as idéias, destemperam-se o faro investigativo e a criticidade do engomado jornalista.
A inquietude se foi. O olhar fulgurante, sedento, incisivo sobre a pauta praticamente inexiste. Abriu alas para uma apatia descomunal, para a incapacidade de questionamento; perdeu para o discurso medíocre da instantaneidade, do imediatismo; vergou-se frente a correria bestial para 'cobrir tudo' que, geralmente, acaba por não cobrir bulhufas.
O repórter televisivo deixou de ser a víbora e encarnou lagartixa. Perante o entrevistado, balança insistente e positivamente a cabeça, sorri de forma cínica, como se estivesse a processar as informações que recebe, mas nada disseca. As absorve apenas e, boas ou ruins, verdades ou mentiras, as regurgita na redação. Filho da pauta, agarra-se a ela como um rebento primata preso às costas da mãe. E não a larga por nada. Já não tem mais fontes. Já não sugere pautas – nem mesmo aquelas que gostaria de cobrir. Já não se orgulha por trazer da rua a informação a mais que a pauta não lhe dava. Não. O universo do repórter engomadinho e maquiado resume-se ao espaço de uma folha A4. E só.
Incompreendeu que é a alma do jornalismo. Pior, desaprendeu a ser repórter. Não fuça, não esmiúça, não escarafuncha nada. Deixou de ser o pugilista das palavras que, à primeira abertura de guarda do entrevistado, socava-lhe o estômago com uma pergunta ácida e fulminante, capaz de derrocar uma história inventada. Supervaloriza alguns segundos de passagem (momento em que aparece no vídeo) e os sobrepõem à sua capacidade textual e de discernimento, ao seu olhar crítico sobre as coisas.
Reúne a família para assistir às suas performances e sente-se um Deus. Crê em um reconhecimento tão ilusório quanto tem sido o seu papel de informador. Ego nas alturas (alguns sequer cumprimentam os colegas de profissão), sente a 'glória' do reconhecimento, quando, na verdade, é apenas um conhecido fadado ao esquecimento caso suma da tela por alguns meses ou até mesmo dias. Eis a prova da efemeridade em que a TV transformou o seu trabalho, mas que ele faz questão de reverenciar.
O repórter televisivo já não vê poesia em sua profissão. Escreve por escrever. E se estiver próximo de encerrar o expediente, escreve qualquer coisa mesmo. Tornou-se um burocrata. Ou seja, tudo o que não poderia ser. Esquálida, a alma do jornalismo desaba em frangalhos.
Álvaro Müller é jornalista?
Comentários
Aproveitando para responder à pergunta final, devo dizer que esta crítica não representa apenas um bom texto, bem pontuado, escrito por um jornalista competente e que carrega consigo qualidades tais como: poesia e humanismo no olhar sobre a realidade e a grande gentiliza de saber trabalhar em equipe. Enquanto estudante de jornalismo, este texto soa-me como uma oportuna lição. Suas palavras, desde já, contribuirão tanto com o meu desejo de "ser" uma boa jornalista, quanto com o de "fazer" um bom jornalismo. Mas, com um tom de aprendiz, típico de uma estagiária na área, pergunto-lhe: O problema, ao seu ver, está no repórter que "ncompreendeu que é a alma do jornalismo" ou está no meio ou, ainda, nos dois? Relembro-me agora das palavras de McLuhan "O meio é a mensagem".
VIVA A VOCÊ QUE SOUBE SE SOBRESSAIR EM MEIO AO CAOS POR PERCEBÊ-LO! (...)