É Noite

Fernando Pessoa

É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.

Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só veio aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?

Comentários

Anderson Ribeiro disse…
Impressionante como ELE consegue com palavras tão simples e com elemento únicom consegue ser tão profundo, tão filosófico, tão pleno, tão poético.
Claudianha disse…
Penso que o poeta poderia acender a sua própria luz e ter a sua própria familia, parece que ele estava muito preocupado com a vida do vizinho enquanto a dele estava passando sem a menor graça.
Anderson Ribeiro disse…
Ele diz que a luz o faz sentir humano. Ele sabe que dentro existem outras pessoas que até o atraí, mas ele não quer saber, só a luz o interessa. Se se preocupar com a vida lá dentro com nome e identidade ultrapassa eu limite de realidade imediata, que é a luz naquele momento.

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