“Quem para de competir no Brasil vira bagaço de laranja”

Medalhista olímpico no salto triplo, Nelson Prudêncio é a prova de que o brasileiro precisa pular a falta de incentivo e de políticas eficientes para se imortalizar na história do atletismo


Os Jogos Olímpicos da Cidade do México, em 1968, eternizaram uma das mais memoráveis disputas pelo ouro de todos os tempos. Era a final do salto triplo. Na briga pelo lugar mais alto do pódio, o recorde mundial foi quebrado nada menos do que nove vezes. Entre os competidores, o brasileiro Nelson Prudêncio, à época com 24 anos, saltou 17,27 metros, viveu a alegria de ser recordista e, logo depois, foi superado por Viktor Saneyev. Com 17,39 metros, o soviético ficou com o recorde mundial e o ouro. Prudêncio, com a honrosa prata.
Quatro anos depois, nas Olimpíadas de Munique, então Alemanha Ocidental, Prudêncio voltou a ganhar mais uma medalha, desta vez de bronze, e cravou definitivamente seu nome na história do atletismo. Somadas a dois vice-campeonatos nos Jogos Panamericanos – Winnipeg, em 1967, e Cáli, em 1971 –, as conquistas olímpicas fazem do filho da tímida cidade de Lins, em São Paulo, uma das maiores referências do salto triplo brasileiro, ao lado de Adhemar Ferreira da Silva e João Carlos de Oliveira, o João do Pulo.
Hoje, aos 66 anos e doutor em Ciência do Esporte, Nelson Prudêncio integra o programa Heróis do Atletismo, iniciativa da Caixa Econômica Federal para a preservação da memória do esporte brasileiro. A convite da CEF, veio a Aracaju neste final de semana, onde acompanhou o Circuito Caixa de Maratoninha, maior competição infantil do País, e ministrou palestras para a comunidade do Bairro Santa Maria e para alunos do curso de Educação Física da Universidade Tiradentes. Frente a frente com os acadêmicos, foi incisivo: “Quem para de competir no Brasil vira bagaço de laranja”.
A constatação, feita por um medalhista olímpico, é a prova cabal de que todo atleta brasileiro ainda precisa aprender a saltar a falta de incentivo e de políticas públicas eficazes para fazer história no esporte. Nada mais justo, portanto, que iniciar a entrevista a partir desta afirmação.

Botecospício – “Quem para de competir no Brasil vira bagaço de laranja”. Porque essa afirmação?
Nelson Prudêncio – Simplesmente porque, após terminada sua carreira como atleta, você não tem mais serventia, não é mais moeda de troca. Isso tem ocorrido em todos os lugares e modalidades, até mesmo no futebol. Enquanto se está dando lucro, beleza. Depois...

Botecospício – Como o senhor iniciou no atletismo?
NP – Por acaso mesmo. Apareci na pista e me perguntaram se eu sabia o que era atletismo. Nunca tinha visto um salto, nunca havia ouvido falar sobre atletismo, como bom brasileiro meu negócio era futebol, mas meu biotipo chamou a atenção. Depois, a firma onde eu trabalhava como torneiro mecânico perguntou se eu queria defender a cidade nos jogos regionais. Acho que não tinha gente para competir, né? (risos). Fiquei sabendo que os competidores ganhavam uma semana de folga na empresa e pensei: “Ah, que beleza!”. Foi aí que tudo começou.

Botecospício – O que difere o atletismo de hoje daquele da época em que o senhor competia?
NP – O conhecimento, a evolução tecnológica, material, tudo. Hoje é possível acompanhar como o organismo humano reage frente às cargas de treinamento. Antes só víamos o esqueleto. Não existia a parte móvel da coisa, coração, pulmão, fibras musculares, fonte de energia.

Botecospício – Treinamento então era só correr e saltar...
NP – Simples como a água. Hoje não trabalhamos mais na relação de erros e acertos. A ciência, a fisiologia do esforço, a biomecânica já nos permitem ter indicadores para dizer, inclusive, em que tipo de prova o atleta rende mais.

Botecospício – O senhor teme que aconteça com o atletismo o que aconteceu com a Fórmula 1, onde a capacidade do atleta foi superada pela tecnologia?
NP – Não. No atletismo, temos que agradecer muito mais aos nossos pais, pelo legado genético. Há pessoas que têm 60% de fibras musculares de contrações rápidas, mesmo com todo o treinamento, e outras que nascem com 90%. O treinamento não faz ninguém chegar até lá, seria como mudar a estrutura do ser humano.

Botecospício – O que o Brasil precisa fazer para avançar no atletismo?
NP – Um trabalho mais forte de detecção de novos atletas. No País inteiro, o único lugar onde já se realiza um trabalho planejado, voltado para o rendimento máximo, é em Bragança Paulista. Lá, 60 garotos estão treinando, potenciais talentos. Veja você, quando fui fazer uma palestra no Bairro Santa Maria e vi a estatura daquela garotada, falei: “Vamos testar essa turma!”. É o que precisamos fazer.

Botecospício – O que é ser um medalhista olímpico?
NP – É gratificante saber que meu nome está escrito no livro da vida e isso não tem explicação. A única coisa que se pode fazer é agradecer. O esporte me escolheu.

Botecospício – Sua maior glória são as medalhas olímpicas. E a maior frustração?
NP – Creio não haver. Ainda tenho, sim, o sonho de que o nosso País consiga colocar, pelo menos, um atleta na final de cada prova de olimpíada. Daí para a frente, medalha será uma consequência.

Botecospício – O senhor fez uma das disputas mais memoráveis da história do atletismo. Qual é a sensação de bater o recorde mundial e vê-lo ser batido na mesma prova?
NP – Instigante, porque a partir do recorde você percebe que tem condições de luta. Eu desconhecia o meu máximo e quando vi o recorde batido, chorei de alegria. Não acreditava ser capaz de fazer aquilo. Depois, quando o Viktor Saneyev ultrapassou a marca, é claro que fiquei triste, mas reconheci a capacidade dele. Aliás, uma das funções do esporte é nos ensinar a reconhecer o potencial e talento das outras pessoas. Quando fui para os Jogos Panamericanos de 1975, novamente na Cidade do México, disposto a tomar o recorde mundial do soviético, quem acabou batendo foi o João Carlos de Oliveira, e aí chorei de alegria. João estava em ascendência no esporte e aquilo foi lindo. Cheguei para ele e disse: “Você não sabe o que fez”.

Botecospício – Como é para um atleta ter de parar?
NP – Tem que se preparar para isso, porque o atleta está acostumado a viver num ambiente de competição com os top class do País, e depois que para, aquela luz no fim do túnel passa a não existir mais. Muitos se deixam levar por isso e ficam abatidos. Para preencher essa lacuna, encontrei motivação nos estudos.


Fotos: Marcelo Freitas e José Weider Moreira

Comentários

Anderson Ribeiro disse…
Linda entrevista. Tempos em que ser superado é reconhecer o potencial do outro, é muito bonito mesmo.

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